Corria o ano 2000, se a memória não me falha, quando vi uma senhora a entrar num autocarro, ali para os lados de Union Square, em Nova Iorque. Tinha o aspecto de quem fazia da rua o telhado de casa. Numa mão carregava uma garrafa embrulhada num saco de papel, e na outra um gorduroso Big Mac. Lembro-me de ter pensado que aquela coisa, cuja utilidade nunca percebera nos filmes, o saco de papel à volta da garrafa, existia mesmo.
Falando enquanto alguns pedaços de pão lhe iam caindo da boca, a senhora vociferava sobre as condições de vida e o custo da alimentação. Gritava, para que todos ouvissem, que era mais barato comer no McDonalds do que ir ao supermercado e cozinhar. Isto, claro, partindo do princípio que conseguiria encontrar uma cozinha onde pudesse confeccionar qualquer coisa.
O que me pareceu caricato na altura, na inocência dos 20 anos, era a disparidade entre os rios de dinheiro distribuídos ali ao lado em Wall Street e a quantidade de pessoas nos quarteirões adjacentes que, tal como aquela senhora, resumiam as suas posses ao que o McDonalds conseguisse embalar. Comia-se por quatro dólares. Era, de facto, mais barato do que ir ao supermercado comprar qualquer coisa com menos óleo e plástico.
Duas décadas depois, estamos lá outra vez. Não apenas na meca do liberalismo, mas também na Europa que, outrora, já foi mais justa e solidária na distribuição de riqueza.
Lembrei-me desta senhora quando saí do supermercado, ontem, com 300 gramas de mirtilos e 500 gramas de uvas, a troco de 10 euros. Por norma o meu filho come os mirtilos como se fossem água e, desta vez, quando o vi abrir a mão naquela caixa de fósforos, como se estivesse a tirar pipocas, disse-lhe: “vai como calma que estás a comer pepitas de ouro”.
Pelo preço das uvas e dos mirtilos, poderíamos ter almoçado os dois um Big Mac, e assim tudo o que consegui foi um complemento para adicionar ao iogurte e tentar disfarçar o aborrecimento que é a oferta de derivados num supermercado sueco.
Quero eu comer Big Macs? Nem por isso. Preferia bifes da Jonet ou framboesas daquelas que nos chegam de Odemira, de preferência sem pele de nepaleses explorados. Mas constato que o Mundo está a entrar numa espiral de pobreza, para a qual, até ao momento, só ouvi a “solução” de que em 2025, por artes mágicas da Economia (são todas), a inflação voltaria aos 2% – e, quem sabe, por essa altura, até poderemos comer um melão ou uma manga em terras frias.
Depois de dois anos sem nos podermos mexer, sobram agora mais dois suportados por papas, bolachas, arroz e pêra-rocha. Quem saiu da covid-19 sem camada adiposa extra ainda vai a tempo de se candidatar durante o período em que a Lagarde mandar no Mundo.
Todos os dias me faço a mesma pergunta: o que acontecerá quando um número razoável de pessoas não tiver habitação, comida e ajuda social? Começam a roubar? Começam os protestos em massa? Começa a revolução?
No meio destes pensamentos corriqueiros de um anónimo pai de família, leio as declarações do CEO do Santander que, resumidamente, não notava grandes mudanças nos créditos da classe média e que os padrões de consumo se mantinham, como, por exemplo, jantar fora à sexta-feira. Deduzo que por aqui se depreenda que, como ainda há consumo, a inflação não está a baixar tão depressa como se desejaria.
Bom, bom, era que nos fechássemos todos em casa, e de lá saíssemos apenas para produzir e gerar lucros para outrem. Nada de viver – isso deixemos antes só para os ricos. Pedro Castro e Almeida (estes gajos precisam sempre de três nomes) ainda disse que as poupanças durante a pandemia da covid-19 estavam a ajudar a que os padrões de consumo não se alterassem.
Intriga-me esta frase, e já a ouvi a vários economistas. Como é que se poupa com 900 euros líquidos por mês? É que é esse o salário máximo de três quartos dos portugueses. Expliquem-me como é que se poupa a esmola a que chamam salário? Temos quatro milhões de Houdini?
Tenho uma certa curiosidade – mórbida confesso – para ouvir uma conversa entre banqueiros. Um dos requisitos de tal estirpe parece ser a total falta de contacto com a realidade em simultâneo com a sensibilidade de um elefante numa loja de porcelanas. É difícil, mesmo com alguma imaginação, pensar numa frase mais estúpida de ser dita por um milionário num período como aquele em que se vive em Portugal.
É importante que percebamos o que se vive em Portugal. Mais de 40% das pessoas estão no limiar da pobreza antes das transferências sociais. Ou seja, num regime político como aquele que o Chega ou a Iniciativa Liberal defendem, praticamente metade da população estaria no limiar da pobreza.
Neste cenário, com gente a sofrer diariamente e com salários que não chegam ao fim do mês, eu espero, a bem da sanidade mental, que se por acaso vos der gosto ir jantar fora, que o façam. À sexta, ao sábado, à quarta. Quando vos apetecer.
Esta coisa de se achar que a classe trabalhadora deve viver para produzir riqueza para os outros e, sempre que faz algo fora desse percurso (casa-trabalho), está a viver acima das suas possibilidades ou a pisar terrenos que não são seus, nem chega a ser um pensamento burguês, de tão rudimentar que é. Aliás, é mesmo pensamento de um filho da puta, que acha que quem trabalha só está no planeta para servir os interesses do capital e de banqueiros como ele.
Aqui há uns anos, enquanto Pedro Proença passeava no Colombo, ali em Lisboa, um adepto do Benfica cruzou-se com ele. Para quem não sabe quem foi Pedro Proença, era uma espécie de Artur Soares Dias na primeira década do século XXI. Mesmo método, mesmo patrão, mesma recompensa… O adepto que o reconheceu, depois de lhe perguntar o caminho para a FNAC, ofereceu-lhe um voucher de desconto para usar no dentista – e, assim, conseguiu refazer-lhe o corta-palha.
Pergunto-me se o Salgado, o Ulrich – o do “ai-aguenta-aguenta” –, o Gonçalves, o Loureiro e este Castro e Almeida não se cansam de jogar golfe na Comporta e não sentem vontade, aqui e ali, de ir dar uma volta ao Colombo. Ou ao Corte Inglés, que é mais requintado.
São momentos mágicos, e surpresas ao virar de uma esquina, que podem estar a perder. Sem necessidade – até porque são gratuitos e dados de boa vontade.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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